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domingo, 22 de julho de 2012

Lefebvre perdoado.

Dom Marcel Lefebvre
A batalha do arcebispo Marcel Lefebvre contra o Concílio Vaticano II começou antes ainda da sua abertura, nos trabalhos da comissão preparatória, acompanhou o seu desenvolvimento e continuou em formas cada vez mais explícitas e ásperas até a fundação da Fraternidade Sacerdotal São Pio X e do seminário de Ecône, em 1970, a suspensão a divinis decretada em 1976 por João Paulo II [ndr: na realidade, Paulo VI] por causa das ordenações sacerdotais por ele realizadas contra a proibição de Roma, a consagração cismática de quatro novos bispos em 1988 e a excomunhão latae sententiae que se seguiu. Uma excomunhão revogada, por fim, depois de longas negociações com o motu proprio papal de 21 de janeiro de 2009.
Sinos em festa, tudo está bem quando acaba bem: aquela patrulha combativa e tenaz de tradicionalistas incuráveis, adversos não só à nova missa de Paulo VI, mas também à liberdade de consciência sancionada pelo Concílio, ao ecumenismo, ao espírito de fraternidade com o judaísmo, inclinados contra todo compromisso com o mundo moderno, visto como uma colônia de vermes de perniciosas heresias protestantes, liberais, maçônicas e comunistas, havia portanto se rebaixado a conselhos mais mansos e havia voltado ao aprisco da Santa Igreja? Aquele perdão era, portanto, a consequência de um arrependimento, ou ao menos de um ato de obediência de quem finalmente havia obtido as cobiçadas derrogações em matéria litúrgica?

Nada isso, nos explica este livro de Giovanni Miccoli, La Chiesa dell’anticoncilio, que estuda os fatos da Fraternidade lefebvriana não só e não tanto como problema histórico em si, mas sobretudo como um teste decisivo das “atuais orientações do papado romano”, da forma como elas se manifestaram ao se confrontar com aquela pungente pedra no sapato. A partir dessas densas páginas, fundamentadas no habitual rigor documental e metodológico de Miccoli, emerge, ao contrário, o progressivo distanciamento das lideranças curiais dos “excessos”, dos “arbítrios”, das “invasões” ao interpretar os documentos oficiais provenientes do Vaticano II, cada vez mais reduzido a concílio pastoral, privado de valores doutrinais, despotencializado das suas instâncias mais profundas.
Assiste-se, assim, aos resultados de um processo longo e atormentado, que persistiu por mais de meio século entre múltiplas dificuldades, resistências, contradições, conflitos internos, com os renovadores de ontem que se tornaram os conservadores de hoje, em um processo de restauração que corre o risco de se tornar, por sua vez, motivo de mais fraturas e dilacerações.
Não há dúvida, de fato, de que Lefebvre tinha ótimas razões ao proclamar que o Concílio havia mudado ou, melhor, invertido posições doutrinais e morais que haviam acompanhado a história do intransigentismo católico até a Mirari Vos de Gregório XVI, ao Syllabus de Pio IX, à dura luta contra o modernismo, ao triunfalismo papal de Pio XII: o que, no entanto, ao menos em certa medida, era precisamente o que os defensores do Concílio haviam pretendido fazer, para libertar a Igreja do severo castelo onde havia acabado com o fechamento de si mesma e para relançar a ação evangelizadora em termos novos e em um mundo profundamente modificado.
Posições irreconciliáveis, como os lefebvrianos continuaram denunciando por décadas, fortalecidos pela sua rochosa fidelidade às doutrinas “de sempre”, à missa em latim “de sempre”, à Igreja “de sempre”, ao conservadorismo social e ao autoritarismo político “de sempre”, embora denunciar os desvios, os erros, as verdadeiras heresias dos pontífices, celebrar liturgias proibidas, consagrar bispos a despeito da suspensão a divinis, ser a prova evidente de um deplorável pluralismo católico impunha difíceis equilibrismos e uma constante duplicidade de linguagem. Uma irreconciliabilidade que, ao contrário, a Igreja Romana tentou atenuar com atitudes cada vez mais mórbidos, sobretudo durante o pontificado de Bento XVI, como se percebe tanto nos documentos oficiais da Santa Sé quanto nas declarações de altos prelados, começando pelo cardeal Castrillón Hoyos, a quem foi confiada a tarefa de reabsorver essa dissidência lefebvriana à qual se voltavam todas as suas simpatias.
Daí a crescente disponibilidade para encontrar um acordo, para silenciar os pontos mais espinhosos, para salvar a forma mais do que a substância da herança conciliar e, às vezes, também, para assumir sem vacilar as críticas mais severas (veja-se, por exemplo, no site www.sanpiox.it, a última carta do sucessor de Lefebvre, Bernard Fellay, endereçada no dia 21 de dezembro de 2011 aos amigos e benfeitores da Fraternidade).
O trabalho de Miccoli reconstrói a tradição reacionária e integralista do catolicismo, da qual Lefebvre provinha, os episódios que levaram à ruptura com Roma, a fragmentação da Fraternidade no momento da excomunhão e, sobretudo, a fatigante recomposição do cisma. Ao fazer isso, ele acaba se adentrando na trama de silêncios prudenciais, cedimentos progressivos, ambiguidade evasivas das fórmulas curiais para captar a substância do problema histórico que eles se esforçavam para dar a volta e que as afirmações daqueles intransigentes tradicionalistas enfrentavam de peito aberto, ao invés.
Era o mesmo problema, além disso, ao qual o Vaticano II tentara dar uma resposta: aquela difícil, para não dizer conflitante, relação entre a Igreja e a história, entre o distanciamento como juiz dela como guardiã de uma perene verdade divina ou o sentir-se parte integrante dela, carregando o seu fardo oneroso (incluindo o dos seus erros), entre a tarefa de preservar verdades de fé imutáveis no tempo ou a exigência de enfrentar a incessante mudança dos modos de pensar, de agir, de sentir que também investe contra a religião.
No Concílio de Trento, para combater o sola Scriptura dos protestantes, a Igreja Católica elevou o seu magistério, fundamentado sobre a tradição apostólica, ao cargo de fonte da revelação assim como a Palavra de Deus. Essa tradição, na realidade, conheceu múltiplas mudanças ao longo dos séculos, e a Igreja “de sempre” dos lefebvrianos nada mais é do que a severa Igreja tridentina prolongada de Pio V a Pio XII que o Vaticano II tentou, ao menos em parte, superar.
À distância de mais de meio século, é lícito dizer – e esse livro ajuda a entender – que o recuo está em curso em toda a linha e que a Igreja do futuro parece se anunciar cada vez mais semelhante com a do passado.
  • Giovanni Miccoli, La Chiesa dell’anticoncilio. I tradizionalisti alla riconquista di Roma. Roma: Laterza, 420 páginas.

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