Dom Marcel Lefebvre |
A batalha do arcebispo Marcel Lefebvre
contra o Concílio Vaticano II começou antes ainda da sua abertura, nos
trabalhos da comissão preparatória, acompanhou o seu desenvolvimento e
continuou em formas cada vez mais explícitas e ásperas até a fundação da
Fraternidade Sacerdotal São Pio X e do seminário de Ecône, em 1970, a
suspensão a divinis decretada em 1976 por João Paulo II [ndr: na
realidade, Paulo VI] por causa das ordenações sacerdotais por ele
realizadas contra a proibição de Roma, a consagração cismática de quatro
novos bispos em 1988 e a excomunhão latae sententiae que se seguiu. Uma
excomunhão revogada, por fim, depois de longas negociações com o motu
proprio papal de 21 de janeiro de 2009.
Sinos em festa, tudo está bem quando acaba bem: aquela patrulha
combativa e tenaz de tradicionalistas incuráveis, adversos não só à nova
missa de Paulo VI, mas também à liberdade de consciência sancionada
pelo Concílio, ao ecumenismo, ao espírito de fraternidade com o
judaísmo, inclinados contra todo compromisso com o mundo moderno, visto
como uma colônia de vermes de perniciosas heresias protestantes,
liberais, maçônicas e comunistas, havia portanto se rebaixado a
conselhos mais mansos e havia voltado ao aprisco da Santa Igreja? Aquele
perdão era, portanto, a consequência de um arrependimento, ou ao menos
de um ato de obediência de quem finalmente havia obtido as cobiçadas
derrogações em matéria litúrgica?
Nada isso, nos explica este livro de Giovanni Miccoli, La Chiesa
dell’anticoncilio, que estuda os fatos da Fraternidade lefebvriana não
só e não tanto como problema histórico em si, mas sobretudo como um
teste decisivo das “atuais orientações do papado romano”, da forma como
elas se manifestaram ao se confrontar com aquela pungente pedra no
sapato. A partir dessas densas páginas, fundamentadas no habitual rigor
documental e metodológico de Miccoli, emerge, ao contrário, o
progressivo distanciamento das lideranças curiais dos “excessos”, dos
“arbítrios”, das “invasões” ao interpretar os documentos oficiais
provenientes do Vaticano II, cada vez mais reduzido a concílio pastoral,
privado de valores doutrinais, despotencializado das suas instâncias
mais profundas.
Assiste-se, assim, aos resultados de um processo longo e atormentado,
que persistiu por mais de meio século entre múltiplas dificuldades,
resistências, contradições, conflitos internos, com os renovadores de
ontem que se tornaram os conservadores de hoje, em um processo de
restauração que corre o risco de se tornar, por sua vez, motivo de mais
fraturas e dilacerações.
Não há dúvida, de fato, de que Lefebvre tinha ótimas razões ao
proclamar que o Concílio havia mudado ou, melhor, invertido posições
doutrinais e morais que haviam acompanhado a história do
intransigentismo católico até a Mirari Vos de Gregório XVI, ao Syllabus
de Pio IX, à dura luta contra o modernismo, ao triunfalismo papal de Pio
XII: o que, no entanto, ao menos em certa medida, era precisamente o
que os defensores do Concílio haviam pretendido fazer, para libertar a
Igreja do severo castelo onde havia acabado com o fechamento de si mesma
e para relançar a ação evangelizadora em termos novos e em um mundo
profundamente modificado.
Posições irreconciliáveis, como os lefebvrianos continuaram
denunciando por décadas, fortalecidos pela sua rochosa fidelidade às
doutrinas “de sempre”, à missa em latim “de sempre”, à Igreja “de
sempre”, ao conservadorismo social e ao autoritarismo político “de
sempre”, embora denunciar os desvios, os erros, as verdadeiras heresias
dos pontífices, celebrar liturgias proibidas, consagrar bispos a
despeito da suspensão a divinis, ser a prova evidente de um deplorável
pluralismo católico impunha difíceis equilibrismos e uma constante
duplicidade de linguagem. Uma irreconciliabilidade que, ao contrário, a
Igreja Romana tentou atenuar com atitudes cada vez mais mórbidos,
sobretudo durante o pontificado de Bento XVI, como se percebe tanto nos
documentos oficiais da Santa Sé quanto nas declarações de altos
prelados, começando pelo cardeal Castrillón Hoyos, a quem foi confiada a
tarefa de reabsorver essa dissidência lefebvriana à qual se voltavam
todas as suas simpatias.
Daí a crescente disponibilidade para encontrar um acordo, para
silenciar os pontos mais espinhosos, para salvar a forma mais do que a
substância da herança conciliar e, às vezes, também, para assumir sem
vacilar as críticas mais severas (veja-se, por exemplo, no site
www.sanpiox.it, a última carta do sucessor de Lefebvre, Bernard Fellay,
endereçada no dia 21 de dezembro de 2011 aos amigos e benfeitores da
Fraternidade).
O trabalho de Miccoli reconstrói a tradição reacionária e
integralista do catolicismo, da qual Lefebvre provinha, os episódios que
levaram à ruptura com Roma, a fragmentação da Fraternidade no momento
da excomunhão e, sobretudo, a fatigante recomposição do cisma. Ao fazer
isso, ele acaba se adentrando na trama de silêncios prudenciais,
cedimentos progressivos, ambiguidade evasivas das fórmulas curiais para
captar a substância do problema histórico que eles se esforçavam para
dar a volta e que as afirmações daqueles intransigentes tradicionalistas
enfrentavam de peito aberto, ao invés.
Era o mesmo problema, além disso, ao qual o Vaticano II tentara dar
uma resposta: aquela difícil, para não dizer conflitante, relação entre a
Igreja e a história, entre o distanciamento como juiz dela como guardiã
de uma perene verdade divina ou o sentir-se parte integrante dela,
carregando o seu fardo oneroso (incluindo o dos seus erros), entre a
tarefa de preservar verdades de fé imutáveis no tempo ou a exigência de
enfrentar a incessante mudança dos modos de pensar, de agir, de sentir
que também investe contra a religião.
No Concílio de Trento, para combater o sola Scriptura dos
protestantes, a Igreja Católica elevou o seu magistério, fundamentado
sobre a tradição apostólica, ao cargo de fonte da revelação assim como a
Palavra de Deus. Essa tradição, na realidade, conheceu múltiplas
mudanças ao longo dos séculos, e a Igreja “de sempre” dos lefebvrianos
nada mais é do que a severa Igreja tridentina prolongada de Pio V a Pio
XII que o Vaticano II tentou, ao menos em parte, superar.
À distância de mais de meio século, é lícito dizer – e esse livro
ajuda a entender – que o recuo está em curso em toda a linha e que a
Igreja do futuro parece se anunciar cada vez mais semelhante com a do
passado.
- Giovanni Miccoli, La Chiesa dell’anticoncilio. I tradizionalisti alla riconquista di Roma. Roma: Laterza, 420 páginas.
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